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sexta-feira, 13 de maio de 2016

O último resquício

       

       É manhã de outono. Algumas mulheres estão varrendo as folhas secas do pátio da Pinacoteca. Em frente à entrada principal há uma árvore grande, de tronco grosso e finos galhos nus. O ar é fresco e nublado. A Pinacoteca está fechada. Eu também sempre estive fechado para ela pois apesar de morar há dois anos em São Paulo, nunca a visitei. Na rua há pouco movimento. Um homem que passeia com dois cachorros, dois guardas que caminham, transeuntes.
     Entro na Praça da Luz. O lugar é bonito. Árvores grandes, algumas pessoas e tranquilidade. É difícil ver São Paulo em silêncio. Ainda assim ouço, bem ao longe, o barulho dos ônibus, um som longínquo e intermitente de uma máquina, e badaladas de um sino de igreja. São 10 horas. Hoje é domingo, dia das mães. Mãe é mãe. Odeio clichês. Não falo com minha mãe há nove anos e seis meses. É melhor eu ir andando. Tenho que levar este livro até o Largo do Arouche. Na saída da Praça escuto:
        “E aí barbudo?”
        É uma prostituta velha e sugada. Provavelmente é mãe. Deve ser foda ser filho de puta. Não respondi ao cumprimento dela. É uma grosseria de minha parte, eu sei.
         Pego a rua Mauá. A calçada está repleta de lixo. Sacolas, restos de comida, latinhas de cerveja. No ar paira um cheiro acre de urina. Alguns mendigos caminham feito zumbis. Em uma esquina, em um dos poucos bares abertos, duas pessoas alcoolizadas discutem calorosamente enquanto um rapaz mija num muro. Decido mudar de trajeto. Retorno para entrar na rua General Couto de Magalhães. No meio do caminho vejo um bicho procurando comida entre os detritos, o bicho não é um homem, o bicho é um cachorro.
    A rua está praticamente deserta, os estabelecimentos comerciais estão todos fechados e as paredes todas pixadas dão a ideia que pessoas passam por aqui. Viro na rua Vitória, me parece ser uma rua pacata também, não fosse um grupo de quatro travestis que conversa à porta de uma casa. Uma delas usa uma peruca loira, tem barba e fala alto, bem alto. Passei por elas, senti que me observavam porém não me disseram nada. Por mais que queiram, elas nunca vão poder ser mães.
    Há muitos edifícios pequenos cuja arquitetura é bem antiga. O ambiente é decadente. Parece uma cena de pós-guerra. Sinto que estou no filme O Ensaio Sobre a Cegueira, a cena em que as pessoas caminham pelas ruas imundas, quietas e cinzas. Não é à toa que algumas partes do filme foram filmadas aqui em São Paulo.
      Cruzo a rua Santa Ifigênia e vejo ao longe, no topo de uma igreja, a imagem da Virgem com os braços abertos, estendidos para o céu. Essa é outra mãe que não cuida bem de seus filhos. Eu também não falo com ela.
      Passo por um casal de mendigos dormindo na calçada. O homem tem os olhos entreabertos, e eles se mexem e seguem meus pés. A mulher ao lado é loira, tem os cabelos curtos e uma mosca no seu rosto. Um cobertor vermelho os cobre. Parecem mortos.
        Olho a placa: “Avenida Rio Branco”. Atravesso e sigo na Vitória, volta o cheiro acre de urina ainda mais forte. Logo surge a rua Conselheiro Nébias repleta de colchões enfileirados onde moradores de rua dormem. Do outro lado, um grupo de usuários de drogas se amontoam feito formigas em formigueiro. Não vejo muito bem o que fazem ali, ando rápido e ouço um canto religioso que vem de uma igreja evangélica. Os evangélicos não cultuam a mãe de Jesus, eles até acreditam que Maria teve mais filhos, irmãos de Jesus. Para eles, ela não morreu virgem. Deve ter morrido toda sugada, assim como a prostituta da praça da Luz.
      Chego à esquina da Avenida São João com o coração disparado. Tive medo quando passei pelos usuários de drogas. Sinto o peso do livro em minha mão e me lembro do motivo de estar ali. Lembro-me também da canção “Sampa”, de Caetano, mas não vejo a tal da “poesia concreta em suas esquinas”, vejo apenas o concreto e a bandeira de São Paulo que tremula no edifício Altino Arantes. Uma mulher passa por mim, coça a bunda e peida. Acho graça da deselegância não discreta.
         Finalmente chego no Largo do Arouche que nem é tão largo assim, é pequeno. Um mendigo dorme em uma cama de papelão, outros nos bancos de concreto. Um grupo de homoafetivos conversa, alguns deles se vestem de mulher, outros falam alto mas não chamam a atenção de ninguém. Mais a frente um casal se beija fervorosamente. O cheiro acre de urina é insuportável. Sento-me num banco, perto de uma escultura feita com latinhas dessas de cerveja ou refrigerante. Duas moças bonitas passam com vasos de flores nas mãos. Elas estão sorrindo, estão contentes, é dia das mães. Sim, é por isso que estou aqui. Abro o livro, viro a primeira página e lá está:
          “Que este livro seja
           para você, mais um
           passo para o degrau
           de sua vida e para
           o seu conhecimento e
           sabedoria”.
      Eis o último resquício que tenho da mulher que me pariu, sua letra de mão, sua dedicatória clichê. Peço desculpas a Álvarez de Azevedo e deixo o livro sobre o banco.