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sexta-feira, 30 de maio de 2014

Noite cinzenta


         Debruçado no parapeito da sacada de seu apartamento, Caio vê os pequeninos carros que lá embaixo passam como vaga-lumes. Do canto de um de seus olhos brota uma lágrima que percorre sua face. Pouco a pouco ela vai se desprendendo de sua pele, até se lançar daquele vigésimo quinto andar e explodir no asfalto.
            A sacada é pequena e mal-iluminada. Uma leve brisa joga os seus já grisalhos cabelos na altura dos olhos, ofuscando-lhe parcialmente a visão. Caio está só, apenas o silêncio e a solidão acompanham-no.  Do bolso esquerdo tira um isqueiro e acende o último cigarro. A fumaça logo se junta à noite cinzenta.
            Não sabia dar nome ao que sentia. Talvez fosse a meia-idade batendo-lhe à porta e trazendo-lhe o exame de consciência. Não que tenha cometido muitos delitos no decorrer de sua vida, suas faltas foram aquelas que abrangem a maioria dos homens, foi infiel no casamento, tornou-se um pai ausente e após o divórcio voltou à vida de solteiro, passou a sair com os colegas de trabalho, exagerava na bebida e segunda-feira dava início a mais uma árdua semana. Agora nem isso ele tem mais, aposentou-se há alguns meses e os amigos há tempos não os vê.
            Semana passada foi seu aniversário, o celular não tocou nenhuma vez durante todo o dia. Foi a primeira vez que sua filha não lembrou da data, talvez tenha lembrado mas não quis ligar. Naquele dia percebeu que o pequeno apartamento havia se tornado grande demais para ele. Paredes compridas, cômodos amplos e vazios de móveis pareciam inclinar-se sobre ele. Por isso preferia a pequena sacada onde ele se encontrava agora e onde passava a maior parte do tempo.
            O cigarro consumia-se quase que sozinho. Quando Caio deu-se por si, percebeu que desperdiçara várias tragadas. Não podia fazer mais nada a não ser atirar aquela ponta de cigarro edifício abaixo. Observou a pequena chama riscar lentamente a escuridão da noite. Achou-a bonita. Pena não ter outro cigarro para acender. Procurou no céu estrelas e não as encontrou, olhou para o horizonte e não viu a lua. O céu era uma imensa massa cinzenta.
            Voltou-se para si, não tinha sono. Um arrepio passou-lhe pelo corpo. Não era inverno. O clima era ameno, característico do outono. Mesmo assim encolheu-se, suas mãos tremiam. Parecia que dentro de si havia uma vontade a qual ele tentava conter a todo custo. De repente segurou com as duas mãos no parapeito da sacada e com um só impulso deu um salto, de modo que, com o apoio das pernas, equilibrou-se e conseguiu ficar de pé. Abriu os braços e um sorriso. Sentiu o vento soprando sua face e esvoaçando seus cabelos. Os longínquos sons de buzinas  e de automóveis em constante movimento chamaram sua atenção para baixo. Olhou e viu novamente os vaga-lumes e encantou-se com a feérica dança das luzinhas frementes. Seus olhos cintilavam. Neste instante o interfone tocou, mas ele sequer ouviu. Ele estava inebriado perante a cena que se lhe mostrava. Uma súbita vertigem tomou conta de si, uma de suas pernas falseou, sentiu o peso de seu corpo desprender-se de si e riscou lentamente a noite cinzenta.