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sexta-feira, 25 de abril de 2014

Açougueiro

  (imagem via google)


Escolhi a carne. Sim, a gente é feito de quê? Não há para o ser humano coisa mais íntima, principalmente quando se trata de seu próprio corpo. Há quem diga que sente asco e nojo. Pura bobagem! É claro que contemplá-la assim, em cima desse balcão, toda ensanguentada e picada, pode não ser lá muito agradável para os olhos de muitos.  Mas é assim que deve ser, sangue e carne andam juntos. Perguntaram-me certa vez: você não escolheu ser açougueiro, escolheu? Escolhi sim, respondi. Herdei do meu pai não só este açougue mas também a aptidão plena para exercer o ofício de açougueiro. Para mim carne é o que há de mais importante,  é dela que vem o gosto, o cheiro, a textura e a forma de cada um. Ela me deu tudo na vida, criou meus filhos, sustentou minha família e  nos regou com certas regalias. Foi assim também com meu pai e o pai do meu pai.  A carne nos deu dignidade, por isso a trato com muito respeito e até com carinho. Para aqueles que têm repulsa, eu respeito mas não entendo. Como se pode tratar com repulsa algo que em ti pulsa?
Esta faca pontiaguda que trago na mão é meu instrumento de trabalho, dela não largo. Mantenho-a afiadíssima. O corte tem de ser perfeito, a carne merece respeito. Olha que bonito moço, passada a faca quanta fibra fica, essa cor vermelha vibrante, o cheiro é inebriante. Sei que tem gente que prefere não comer, que tristeza! Somos carnívoros, é a nossa condição, nossa natureza. Pior do que não degustar carne é maltratá-la. Vejo muita gente dilacerando o corpo, pra isso já basta o tempo que nos rói segundo a segundo.  Às vezes é simples descuido, outras falta de amor para consigo mesmo. Contudo algo é certo, carne foi feita pra usar. Quanto desperdício por aí, quanto pedaço de carne que perambula pelas ruas sempre no resguardo. Conheço um monte. A porta do açougue não deixa de ser também uma janela, uma janela para o mundo. Não adianta moço, o povo diz e é verdade, mais dia menos dia a terra vem e come, consome, o corpo some. Carne também exige ciência, usa mas não abusa e se puder lambuza.
Você já deve ter percebido que esse é um assunto que muito me apetece. A gente é assim, gosta de falar sobre aquilo que conhece, pelo menos é assim que deveria ser, não é? Nunca tive muita oportunidade de estudo mas sei como ninguém a maneira de tratar um naco, fazer um lanho, uma vida inteira dedicada à carne. Não me faz falta nenhuma papel de diploma pendurado aqui na parede. Mas se tem uma coisa que me deixa triste é quando penso que tem gente que sonha em comer carne, e fico mais triste ainda ao pensar que alguns morrem sem comer um pedacinho sequer, sem sentir aquele cheirinho de um bom bife ardendo na frigideira. Judiação pura! O churrasco, por exemplo, é uma das maiores afirmações da nossa condição, o cheiro que faz a gente salivar, é melhor nem falar. Privar alguém desse prazer só pode ser coisa de quem não tem o coração feito de carne.  E não há coisa mais linda que uma carne de moça no auge de seu vigor. Moça nua despe-nos de qualquer palavra. Já imaginou paixão sem carne? Impossível! A vida acontece aqui na nossa frente. É assim que eu vejo, vejo com esses olhos feitos também de carne. Espírito nunca vi nenhum. Acho que ninguém nunca viu. Quem sabe do real valor da carne não tem tempo pra perder com essas coisas. Se a gente se pega a pensar em disparates de outro mundo perdemos o esplendor maior da carne. Carne é igual fruta, tem época certa. Aproveitou? Fez bem. Caso contrário o desejo fica latente lá latejando, e o arrependimento por não ter desfrutado deixa a saliva amarga moço, um amargor que nem suco de fruta madura e doce adoça.

Quase meio-dia já, o corpo, que de carne é feito, carne pede. E aí seu moço, já escolheu a carne que vai levar pro almoço?